quinta-feira, 26 de março de 2015

Picuinha



Era uma manhã de inverno tipicamente macapaense, muita água divina, muito Amazonas se afogando, muita gente inacostumada ao frio moderado que se instalava.
Meus pais costumavam discutir por coisas simples e sem sentido, não que as coisas simples da vida não tenham sentido para mim, porém o fato de divergir ideias a respeito de um controle remoto me parece simples e sem sentido.
De repente eis que surge uma gota d’água bem no meio da sala, eu estava no quarto quando ouvi o alarde. Duas pessoas começavam a confabular argumentos sem fundamento. Claro que não eram argumentos, eram apenas palavras de nervosismo.
Mas por que tanto barulho por causa de uma gota d’água? Comecemos a entender então.
A gota d’água, invasora e destruidora de lares, atingiu o bendito controle remoto da TV. Perda total. E agora? Como iriamos alimentar o corpo preguiçoso na hora de saquear os canais da TV? Mesmo que fosse humanamente possível utilizar os botões instalados no televisor, não se cogitava a possibilidade de levantar-se, caminhar até a TV e deitar-se novamente. Nossa, que maratona olimpiana!
Digo deitar-se, porque em nossa casa os sofás não servem para sentar e sim para deitar. Se assim se vive aqui, eu me pergunto: qual o sentido de ter uma cama para cada pessoa nessa casa? Vem a resposta óbvia: nem todo quarto tem uma TV e um controle remoto.
Voltemos aos meus pais. Minha mãe urrou o seu grito mais belo e delicado, banhado a um “belo” palavrão involuntário. O controle, antes de seu suposto homicídio, estava deitado junto ao sofá em que meu pai descansava – ao som de roncos selvagens – após o café da manhã. Meu pai sempre dorme nas horas mais oportunas e inoportunas. Se quisermos assistir a um filme juntos, ele dorme; se combinamos a apreciação de um programa em família, ele dorme; mas se resolvemos nos atrasar para algum compromisso devido ao seu sono, ele não dorme e perturba.
O culpado foi logo descartando sua culpa. “Injustiça, porque durante o sono não temos chance de nos defender de catástrofes naturais”. Quase fui convencido!
Minha mãe com seu temperamento escorpiano, nem quis saber. “A culpa é tua, que fica roncando e esquece de tudo ao teu redor. Vê se presta mais atenção nas coisas, rapaz!”. Minha mãe é minha mãe!!! Ainda bem que é mãe, porque se fosse professora eu estava lascado. Chicote nele! (Chicote em mim).
Ao observar a cena percebi que o controle estava virado com as teclas para baixo, o peguei do chão discretamente e cheio de habilidade desviando das palavras que voavam soltas no recinto. Constatei que a gota d’água atingira apenas o encaixe para as pilhas e que a solução era apenas a substituição por pilhas novas. Sempre fui bom no conserto de controles remotos.
Não comuniquei a descoberta a eles. Corri no meu quarto, troquei as pilhas e voltei para a sala. Naquele momento eles já brigavam em busca do paradeiro do controle remoto. Sorri com ar de antagonista vilão, sentei no meio da sala, enrolado ao lençol salvador dos invernos, apontei o objeto para a tela reprodutora de sonhos e apertei o botão OFF.
A TV desligou, catei um travesseiro renegado ao canto da sala, aconcheguei minha cabeça e desfrutei do silêncio de perplexidade dos meus protagonistas familiares enquanto a chuva reinava absoluta lá fora.
Naquele dia percebi que meus pais precisavam de um diretor e de um núcleo de apoio para suas picuinhas. Exerci as duas funções com maestria. E até hoje busco o meu Oscar.

Nilzan Santos,
29.03.2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário